sábado, 26 de janeiro de 2013

AMOR. AMOR! AMOR? AMOR...


Quem conhece os filmes do Michael Heneke sabe que ele só trabalha com a dificuldade do ser humano em lidar, em viver, em administrar o que ele tem de mais doente. São sempre duas pessoas se completando em algo difícil e penoso de se suportar. Não há o relacionamento agradável ou pelo menos saudável. Não há vítima sem algoz.


Parece-me que para ele, Michael Heneke, qualquer relacionamento, ainda que o social , é falho ou incompleto ou insustentável, jamais de uma forma que chamaríamos normal.

Não seria nesse filme, assustadoramente belo, que ele iria tomar outro caminho. Se a receita vem dando certo.

Por acaso me apaixonei por esse diretor desde A PIANISTA - o seu primeiro filme levado ás telas do Rio.

A seguir CÓDIGO DESCONHECIDO, apesar de ser anterior à A PIANISTA.

CACHÉ (mantido o nome francês: caché = escondido).

FITA BRANCA que anuncia, a meu ver, a perversão do nazismo.

VIOLÊNCIA GRATUITA que mostra o prazer da maldade, numa apresentação notável da folie à deux, sem a visão explícita de uma ligação erótica.

AMOR - todos a quem perguntei sobre o filme falaram de um amor lindo, romântico, verdadeiro, dedicado, etc etc etc.

Para mim, se aquilo é amor, dispenso.

Explico:

- não consegui ver, em nenhuma cena, uma atitude carinhosa entre os dois;

- não consegui ver o casal num relacionamento franco e generoso;

- quando ele se lembra da mulher com saúde não é num momento de ternura ou de alegria, é ela ao piano; era isso que ele mais gostava nela: a arte, o sucesso...talvez invejado;

- ele, uma figura apagada, um marido sempre vivendo á sombra da fama da mulher;

- o cumprimento gentil “você estava linda no concerto, querida”, ou algo semelhante, pareceu-me um lugar comum na relação, tanto que a mulher agradeceu educadamente e basta;

- pareceu-me um casal inglês vitoriano - acho que a rainha Elizabeth e Philip devem ser mais descontraídos e afáveis;

- onde estão as discussões por tolices tão comuns nos casais velhos e que se querem bem... e as ranzinzices que acabam em risos ou resmungos?

- a cena em que ele num abraço a levanta da cadeira não havia absolutamente nada de “abraço carinhoso”, era a melhor forma de a levantar, como a esposa mesmo o ensinou; nada mais que um “abraço necessário”;

- ela, mulher autoritária, insuportavelmente autoritária, e que não conseguia receber o carinho nem mesmo do antigo aluno;

- durante a refeição ela resolve ver um álbum de fotos e pede que o marido o apanhe; ele pergunta, no meio da refeição e com o garfo na mão:”Você quer o álbum agora? “ e ela sem se alterar responde com um sim categórico;

- muitas pessoas tomaram a doença da mulher como Alzheimer e o que ela teve foi um AVC e a seguir outro - no primeiro tentaram retirar o coágulo, porém não houve sucesso na cirurgia; por isso ocorre o segundo AVC e a progressão da doença se apresenta inexoravelmente; sabe-se que um AVC nunca vem sozinho;

- a personalidade autoritária e orgulhosa se tornou mais evidente com a doença; com certeza ela não admitia ser vítima de uma doença que lhe quebrasse a pose;

- ele, o marido, era um acompanhante atento e paciente; mas não amoroso; viver com uma concertista e professora com certeza tinha que ser disciplinado, portanto ele fazia o que devia ser feito; cumpria a sua tarefa á risca, como um profissional;

- despedir a governanta sádica não me pareceu amor e sim mais um ato correto e, acima de tudo, maltratar a sua mulher e ele sabendo o permitir era afrontar seu orgulho de marido e, afinal, ele não queria que a maltratassem; mais tarde acrescento mais um comentário algo a esta cena;

- ele era muito frio em tudo; jamais uma irritação, um gesto de piedade; repito, ambos reservados dentro da própria intimidade;

- quanto á filha nada a comentar porque é o comum acontecer nos casos semelhantes;

- ao ver que ele já não estava suportando mais a situação e que agora ele comandava o show, sem medo, sem obediências, sentiu-se livre até o ponto de a espancar...ele,sem saída, sem quem o ajudasse, ele iria certamente se vingar ainda que inconscientemente de toda a opressão e velada humilhação em que sempre vivera; conscientemente jamais desejaria maltratar a mulher indefesa;

- a bofetada que ele deu foi com força e com um ódio que ele não conseguiu disfarçar; não houve um crescendo de irritação verdadeira at´´e chegar a esse ponto de agressão; ele falava com calma e chegou a argumentar; pela primeira vez ele exigiu ser obedecido, não interessava o motivo; pela primeira vez ele foi o “macho”;

- um homem disciplinado, habituado a fazer o que era certo, viu que não conseguiria mais sustentar tal situação - ele iria começar a agir mal, e isso ele jamais se permitiria;

- então...COM VIOLÊNCIA matou a mulher; sim, com violência; bastava deixar de dar os remédios ou aumentar a dose dos remédios...nenhum médico iria estranhar uma morte esperada;

- e eu faço a pergunta: ELE A MATOU PARA QUE ELA NÃO MAIS SOFRESSE OU PORQUE ELE NÃO MAIS QUERIA SOFRER? A EUTANÁSIA È UM DESCANSO PARA QUEM?

Aquele quarto fechado, onde com certeza ela apodreceria - uma humilhação! Um desrespeito pelo corpo! Foi o que mais me impressionou. Por que trancá-la?

Ao final do filme, depois que ele a mata, há a cena quando eles saem de casa - e mesmo nessa cena, não importa o seu significado, é ela quem comanda indo à frente e dizendo que ele se apressasse...Até depois de morta é ela quem comanda!

Não se sabe o que houve com ele. Supõe-se que ele tenha também morrido, ao vermos a filha chorando e sozinha, no “salon”.

A simbologia do pombo é a paz, mas francamente não consigo ver isso:

. a primeira pomba, escura, ele tranquilamente a encaminhou á janela, por onde ela saiu;ele ainda se sentia com alguma liberdade então, com jeito apanhou a pomba e a lançou ao ar, pela janela;

. a segunda pomba, também escura, não encontrava a saída, e ele impaciente e irritado começa a “caça” com uma tolha,e quase a esmaga, até por fim a atirá-la para fora da janela com irritação e violência.

Pareceu-me que, quando da segunda pomba, ao tentar enxotá-la, já demonstrava que não estava nada simpático a dar a liberdade, a ajudar a sair de onde tudo estava piorando, onde ele também estava perdido sem achar saída; acho que ele se identificou coma pomba, tonta , sem conseguir alçar voo para a liberdade, fora dali.

A título de curiosidade, e porque estou relendo o EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO (agora em edição com notas de roda pé), vi uma ponte interessante entre a cena em que a acompanhante penteia mal e com brutalidade a mulher inválida que segura um espelho, onde não se quer olhar; e enquanto a penteia a acompanhante repete “olha como está bonita” , “veja como está bonita”. Cena terrível porque é verdadeira.

Veio-me logo à lembrança uma passagem em que o narrador de EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO descreve a cena exatamente igual em que a avó, já bem idosa é penteada por uma antiga empregada que força a velha senhora a se olhar no espelho, para que veja como está “bonita”. A velha ao se ver tão velha e feia começa a gritar, desesperada. Neste caso a empregada não causou esse sofrimento conscientemente, mas com certeza inconscientemente.

A relação de poder patrão/empregado por melhor que seja é sempre cruel.

A VINGANÇA É PROPRIA DO HOMEM, está no Gênesis. Há sempre uma vingança no ar...pequenina, disfarçada, ou arrogantemente explícita. É da nossa natureza.

E a palavra AMOR é uma máscara conveniente a muitos relacionamentos sem amor.





Um comentário:

edith sarmento dutra disse...

Acabei por esquecer de comentar uma cena perversa! A única vez em que ele, o marido, acaricia a mão da mulher e lhe fala dele mesmo, o único momento que se vê de carinho, no gesto, na palavra e no semblante; e ele em seguida a mata por sufocamento.